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O CHEIRO DA TANGERINA lyrics
O CHEIRO DA TANGERINA lyrics
turnover time:2024-11-25 15:48:13
O CHEIRO DA TANGERINA lyrics

Com raras exceções

os minerais não têm cheiro

quando cristais

nos ferem

quando azougue

nos fogem

e nada há em nós que a eles se pareça

exceto

os nossos ossos

os nossos

dentes

que são no entanto

porosos

e eles não: os minerais não respiram.

E a nada aspiram

(ao contrário

da trepadeira

que subiu até debruçar-se

no muro

em frente a nossa casa

em São Luís

para espiar a rua

e sorrir na brisa).

Rígidos em sua cor

os minerais são apenas

extensão e silêncio.

Nunca se acenderá neles

– em sua massa quase eterna –

um cheiro de tangerina.

Como esse que vaza

agora na sala

vindo de uma pequena esfera

de sumo e gomos

e não se decifra nela

inda que a dilacere

e me respingue

o rosto e me lambuze os dedos

feito uma fêmea.

E digo

– tangerina

e a palavra não diz o homem

envolto nessa

inesperada vertigem

que vivo agora

a domicílio

(de camisa branca

e chinelos

sentado numa poltrona) enquanto

a flora inteira

sonha à minha volta

porque nos vegetais

é que mora o delírio.

Já os minerais não sonham

exceto a água

(velha e jovem)

que está no fundo do perfume.

Mineral

ela não tem no entanto forma

ou cor.

Invertebrada

ajusta-se a todo espaço.

Clara

busca as profundezas

da terra

e a tudo permeia

e dissolve

aos sais

aos sóis

traduz um reino no outro

liga

a morte e a vida

ah sintaxe do real

alegre e líquida!

Como o poema, a água

jamais é encontrada em estado puro

e pesa nas flores

como pesa em mim

(mais que meus documentos e roupas

mais que meus cabelos

minhas culpas)

e adquire

em meu corpo

esse cheiro de urina

como

na tangerina

adquire

seu cheiro de floresta.

Esse cheiro

que agora me embriaga

e me inverte a vida

num relance num

relâmpago

e me arrasta de bruços

atropelado

pela cotação do dólar.

E não obstante

se digo – tangerina

não digo a sua fresca alvorada

que é todo um sistema

entranhado nas fibras

na seiva

em que destila

o carbono

e a luz da manhã

(durante séculos

no ponto do universo

onde chove

uma linha azul de vida abriu-se em folhas

e te gerou

tangerina

mandarina

laranja da China

para

esta tarde

exalares teu cheiro

em minha modesta residência)

jovem cheiro

que nada tem da noite do gás metano

ou da carne que apodrece

doce, nada

do azinhavre da morte

que certamente

também fascina

e nos arrasta

à sua festa escura

próxima ao coito

anal

ao minete

ao coma

alcoólico

coisas de bicho

não de plantas

(onde a morte não fede)

coisas

de homem

que mente

tortura

ou se joga do oitavo andar

não de plantas e frutas

não dessa

fruta

que dilacero

e que solta

na sala (no século)

seu cheiro

seu grito

sua

notícia matinal.

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Ferreira Gullar
  • country:Brazil
  • Languages:Portuguese
  • Genre:Poetry
  • Wiki:http://en.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
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