Conseguiu um emprego e perdeu uma mulher
Foi até o canal à procura da lua
Mas encontrou na água salobra a sua outra face, um pouco mais escura
E fez de conta que nunca sentiu medo
Fez de conta que nunca amou ninguém
Foi ao bar do céu vazio
Beber lá custa pouco
Você paga o dobro apenas no dia seguinte
Pediu três copos cheios de gelo e um de perdão
E começou a costear a via do super-homem
De manhã os colegas do escritório "Estômago e Conchas"
O encontraram cheio de respeito
Sonho das mulheres, perfeito para as filhas
Perfeito, perfeito
A notícia da morte chegou de tardezinha
No vazio amarelado de uma nova fofoca
Os empregados do partido iam para o terraço
Com as corcundas curvadas da maneira certa
Seu caixão foi um púlpito de freixo e bétula
E um discurso que dizia tudo, mas não dizia nada
E frente às perguntas de uma jornalista bela e morena
E fez de conta que nunca sentiu medo
Fez de conta que nunca amou ninguém
No dia seguinte se apresentou ao trabalho
Com os olhos vazios e um resfriado
E tinha morrido havia pouco
Apenas dez ou doze horas
Mas os sinais da morte eram evidentes
E tinha bilhetes de loteria no lugar dos dentes
Figos da índia no lugar das orelhas
Varetas no lugar das mãos
E no lugar dos cães, uma matilha engomada de seres humanos
E quando lhe disseram que a economia estava doente
E que a fome era o melhor remédio
E fez de conta que nunca sentiu medo
Fez de conta que nunca amou ninguém
Uma semana depois de seu funeral
Tinha a cabeça virada para as costas
Mas encontrou um modo de resolver isso
Chamou o general Barrigacheia
E ordenou o mais feroz bombardeio aos seus sonhos do passado
Pela defesa do povo e dos dias que viriam
Um ano após sua morte viam-se apenas os ossos
Tudo havia desaparecido, menos o fedor
E olhava de sua de sua fossa o povo que se manifestava na praça
E divisou por dentre a multidão a sua amada
Com lagrimas em tempestade pela face
E quando a viu ser pisoteada
Não se descompôs, mas esboçou um sorriso
E fez de conta que nunca sentiu medo
Fez de conta que nunca amou ninguém
Que nunca amou ninguém
Meu amor, o que farei?
Este inverno te congelou, o sangue te agrada
Meu amor, te enterrarei
Esta noite que me cobriu meu rosto te contenta.